“Tenho o dedo podre para relacionamentos”
Muitas pessoas, ao refletirem sobre suas escolhas amorosas, usam a expressão “dedo podre” para descrever sua tendência de escolher parceiros que as fazem sofrer ou as maltratam emocionalmente. Essa sensação de repetição de padrões prejudiciais nos relacionamentos, à luz da psicanálise, pode estar relacionada a processos inconscientes que moldam nossas escolhas, frequentemente enraizados em experiências anteriores de vida. Este artigo busca explorar os motivos psicológicos e emocionais por trás dessa tendência, com base nos princípios da teoria psicanalítica.
A Escolha Amorosa: Um Processo Inconsciente?
De acordo com Freud (1912), grande parte do que nos motiva a agir, sentir e pensar não é consciente. Ou seja, muitas das nossas escolhas são influenciadas por processos inconscientes, que remontam a experiências precoces da infância, especialmente no ambiente familiar. Nesse contexto, a escolha amorosa pode ser uma tentativa inconsciente de reviver e corrigir dinâmicas familiares mal resolvidas.
Por exemplo, uma pessoa que cresceu em um ambiente onde o afeto era escasso ou condicionado pode, sem perceber, buscar parceiros que reforcem essas mesmas dinâmicas, como uma forma de tentar resolver esse “débito emocional” da infância. A repetição de relacionamentos insatisfatórios, então, pode ser interpretada como uma repetição de um padrão afetivo mal resolvido. Em psicanálise, isso é conhecido como “compulsão à repetição”, um fenômeno em que o indivíduo, ao invés de evitar a dor, tende a recriá-la na esperança de, desta vez, conseguir resolvê-la (Freud, 1914).
Vinculações Precoce e Modelos de Apego
A teoria do apego, desenvolvida por John Bowlby (1990), complementa essa visão ao sugerir que as experiências de vínculo com os cuidadores na infância moldam nossos “modelos internos de apego”. Esses modelos servem como base para as expectativas e comportamentos em relacionamentos futuros. Indivíduos que tiveram vínculos inseguros com seus cuidadores – caracterizados por abandono, rejeição ou imprevisibilidade – podem desenvolver um modelo interno de apego ansioso ou evitativo. Isso os leva, na vida adulta, a buscar inconscientemente parceiros que reforçam essas dinâmicas emocionais, ainda que isso traga sofrimento.
Nesse sentido, o “dedo podre” pode estar relacionado a um padrão de apego ansioso, no qual a pessoa se sente atraída por parceiros que oscilam entre proximidade e distância emocional. Isso mantém o indivíduo em um ciclo de busca por afeto, seguido por frustração e dor. Este ciclo pode ser difícil de romper, pois existe uma expectativa inconsciente de que o parceiro problemático possa, em algum momento, fornecer o afeto que nunca foi plenamente dado na infância.
Baixa Autoestima e Padrões de Escolha
Além das influências inconscientes, a baixa autoestima também pode desempenhar um papel significativo na escolha de parceiros problemáticos. Quando uma pessoa tem uma imagem negativa de si mesma, pode acreditar, inconscientemente, que não merece ser tratada com respeito e amor. Nesse cenário, o indivíduo pode aceitar relacionamentos onde é maltratado ou desvalorizado, pois isso reforça sua própria crença de que não é digno de afeto. Este padrão pode ser perpetuado ao longo do tempo, com o indivíduo atraindo repetidamente parceiros que validam essa autoimagem negativa (Luz, 2013).
Na visão de Melanie Klein (1991), uma das teóricas psicanalíticas mais influentes, as experiências infantis de frustração e abandono podem ser internalizadas na forma de objetos internos negativos, o que significa que a pessoa desenvolve uma expectativa inconsciente de que será sempre decepcionada nos relacionamentos. Assim, a baixa autoestima se torna um fator de atração por parceiros que reencenam essas experiências frustrantes.
A Complexidade dos Vínculos Tóxicos
Relações amorosas tóxicas podem ser emocionalmente intensas, o que pode criar uma falsa sensação de profundidade ou “paixão”. Do ponto de vista psicanalítico, essas emoções intensas podem estar ligadas ao narcisismo, em que o sofrimento e a dor são inconscientemente buscados como forma de confirmação da própria identidade e de sua capacidade de suportar o sofrimento (Quinet, 2007). Em algumas pessoas, essa busca por relações intensas está enraizada no medo de vínculos amorosos mais estáveis e saudáveis, que são vistos como entediantes ou desafiadores para o narcisismo.
Essa dinâmica pode ser confundida com paixão, quando na verdade é uma recriação de uma ferida emocional não curada. É possível que o indivíduo, sem perceber, busque parceiros que ativem suas inseguranças e ansiedades profundas, pois isso traz uma sensação de familiaridade emocional, ainda que dolorosa.
Rompendo o Ciclo: O Papel da Psicanálise
Para aqueles que sentem que têm o “dedo podre”, a psicanálise pode ser uma ferramenta valiosa para romper o ciclo de padrões prejudiciais de escolha. O processo analítico permite que o indivíduo explore os desejos inconscientes, os traumas não resolvidos e os padrões de repetição, trazendo à consciência os motivos subjacentes de suas escolhas amorosas. Com esse insight, torna-se possível não apenas compreender, mas também transformar esses padrões.
A psicanálise ajuda a pessoa a identificar a origem de suas expectativas inconscientes, desafiando crenças antigas sobre o amor e a si mesmo. Ao reconhecer os padrões repetitivos e a compulsão à repetição, o indivíduo pode gradualmente abrir espaço para novos tipos de relacionamentos, mais saudáveis e satisfatórios (Birman, 1999).
É possível construir relacionamentos saudáveis
A sensação de ter o “dedo podre” na escolha de parceiros não é um reflexo de azar ou destino, mas sim de processos inconscientes profundos que moldam nossas escolhas amorosas. Entender as raízes desses padrões por meio da psicanálise é o primeiro passo para quebrar o ciclo e construir relacionamentos mais saudáveis e equilibrados. A psicanálise oferece uma abordagem poderosa para explorar as dinâmicas inconscientes que governam o amor, permitindo que o indivíduo se liberte de padrões de sofrimento repetitivo e encontre novas possibilidades de vínculo.
Uma vez que entendemos os motivos pelos quais repetimos um padrão indesejado, conseguimos dar um novo significado para eles e isso nos faz sair desse ciclo. E aí estaremos prontos para construir relacionamentos saudáveis.
Referências
Birman, J. (1999). Arquivos do mal-estar e da resistência. Civilização Brasileira.
Freud, S. (1912). Totem e tabu: Algumas concordâncias entre a vida dos homens primitivos e a dos neuróticos (Vol. XIII). Imago.
Freud, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora.
Klein, M. (1991). Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Imago Editora.
Luz, A. S. (2013). Psicanálise e relações amorosas: O desejo e suas manifestações na escolha do parceiro. Editora Juruá.
Quinet, A. (2007). A descoberta do inconsciente: História da psicanálise. Zahar.
Bowlby, J. (1990). Uma base segura: Aplicações clínicas da teoria do apego. Martins Fontes.
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