Vamos falar um pouco sobre o racismo.
Em primeiro lugar, gostaria de deixar aqui o que um dicionário explica ou define como racismo:
- Preconceito, discriminação ou antagonismo por parte de um indivíduo, comunidade ou instituição contra uma pessoa ou pessoas pelo fato de pertencer a um determinado grupo racial ou étnico, tipicamente marginalizado ou uma minoria. “programa de combate ao r.”
- Atitude de hostilidade em relação a determinada categoria de pessoas. “r. xenófobo” (Oxford Languages)
Eu opino que o termo “racismo” atualmente é muito limitado, principalmente limitado à realidade local em que as pessoas vivem. No Brasil, por exemplo, para muitas pessoas, “racismo” é quando uma pessoa de pele branca ataca ou ofende alguém de pele negra. E só isso mesmo. Qualquer outra forma de ataque racial é vista como algo inexistente ou até mesmo é diminuído, já que não está no padrão mais popular.
O fato é que qualquer pessoa, independentemente de qualquer fator, cor de pele, etnia, crença ou o que quer que seja pode manifestar atitudes racistas. Basta segregar, basta separar, classificar e afirmar que uma pessoa tem uma característica negativa por ser ter certa característica, como a cor da pele ou ter vindo de algum país específico ou mesmo de uma região do Brasil.
A psicanálise sustenta que o racismo e o ódio ao “Outro” são características universais das sociedades. Isso surge da impossibilidade de se construir sem excluir, desvalorizar e odiar o outro.
O eu indiferenciado, primitivo e narcisista projeta de si mesmo o que percebe como indesejado e perigoso, transformando assim o objeto externo em algo estranho e mau. Desta forma, o processo de projeção e repressão torna estranho o que é de fato antigo e familiar. Essa “estranha” “alteridade” faz parte do nosso inconsciente e, portanto, é uma parte inerente de nós.
Esse processo ocorre tanto individual quanto socialmente. Como tal, engloba tanto o psiquismo individual quanto o imaginário social que incluem valores, conceitos de justiça e conceitos de lógica e estética com os quais cada sociedade se constitui.
Esses valores e conceitos desempenham um papel fundamental nas construções sociais e individuais da realidade. Perceber o outro como um inimigo, que é discriminado e temido, é uma parte universal e normal do desenvolvimento de um senso coerente de identidade.
Isso capta como a psicanálise, com sua noção de inconsciente, conecta o fenômeno social do racismo com nossa própria psique. O racismo é a projeção sobre o outro de aspectos indesejados de nós mesmos. Esses aspectos estão em nosso inconsciente. Percebê-los como nossos nos impediria de percebê-los nos outros.
E tem uma coisa. Há pessoas que opinam que o Brasil não é um país racista, que o racismo é coisa antiga, que acontecia apenas no período em que a escravidão era permitida por lei. Mas será que é assim mesmo?
Cronologia breve do racismo no Brasil
Vamos fazer umas contas rápidas: este artigo foi publicado em 2023. A lei que aboliu a escravidão no Brasil é de 1888, ou seja, 135 anos atrás. Agora pense no seguinte: uma pessoa que se sentia proprietária de seres humanos, que nasceu em 1870 e que viveu 95 anos, morreu em 1960. Nesse meio tempo, sabe com quantas pessoas próximas a você ela pode ter tido contato? Pois, quem tem mais de 45 anos, provavelmente tem os pais nascidos nos anos 30. Significa que alguém que nasceu por exemplo em 1935 pôde ter tido contato com um ex-proprietário de seres humanos, por pelo menos 25 anos. E essa pessoa pode ter sido seu pai, sua mãe. Aliás, minha mãe conheceu pessoas que quando jovens haviam sido escravizadas.
O bisavô ou até mesmo o avô de muitas pessoas vivas atualmente pode ter tido contato direto com pessoas relacionadas diretamente com a escravidão, ou até mesmo elas próprias serem essas pessoas. Está vendo como o assunto é bem próximo a mim e a você?
Mas espera, o artigo é sobre racismo ou escravidão? Bem, o ponto é que no contexto histórico do Brasil, especificamente, temos que juntar, pelo menos para muitas conversas, as duas coisas.
Na época em que a escravidão era legalizada, as pessoas comercializadas eram vistas como seres inferiores, desprovidos de alma pela igreja e por isso, para muitos, eles “mereciam” ser escravizados.
Agora, pense comigo: você acha que uma pessoa que pensava assim, de repente, mudou de ideia em 1888 com a lei Aurea?
Provavelmente continuaram pensando como antes, em 1889, em 1900…1960…Até o dia da morte. E nesse tempo, seus pensamentos certamente foram transmitidos a seus filhos e netos. E isso é apenas um dos muitos pontos que fazem com que no Brasil, historicamente, o racismo seja principalmente (mas não exclusivamente) dirigido a pessoas descendentes dessas pessoas que eram comercializadas.
Mas como comentei, o racismo é “democrático” ele pode se manifestar em todas as pessoas, sem nenhum tipo de exceção e por motivos diferentes.
Para combater o racismo, há muitas coisas a se fazer e esse artigo não se destina a comentar isso. Mas uma pessoa que se reconheça racista e queira ajuda (racista que não se reconhece assim jamais irá mudar), contar com um analista para que ela possa se conhecer e fazer os ajustes pode ser algo importante.
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Um texto bem escrito e com implicações importantes e pertinentes em nossa sociedade marcada pela indiferença e mesmo agressividade ao “estranho”. Parabéns.
Só queria implicar no parágrafo final, quando o próprio analista nega a existência da estrutura racista. Qual a alternativa?
Grande Jairo, um prazer ver sua participação! Foi um ato falho, que mostra como o racismo está enraizado em todos, de alguma forma. É preciso nos cuidar, preciso me cuidar também. Um abraço!
Excelente abordagem. Minha vó foi escrava. Meu pai morreu a dois anos e tinha 94 anos. Minhas filhas tem pele clara e eu sou morena, pois meu pai casou com uma italiana. Embora minha família inserida no contexto da escravidão , sou veementemente contra ao sistema de cotas para negros, mesmo eu sendo uma. Enquanto minhas filhas são a favor.
Sou assistente social e também psicanalista, e Enquanto profissional, não acho correto a segregação em muitos quesitos. No entanto as cotas para negros, deficiente, bolsa família e por aí vai , no meu ponto de vista é um racismo
camuflado. E por quê a geração de ex donos de escravos tem que pagar pelas atitudes dos seus antepassados.?
Olá! Concordo totalmente! Do meu ponto de vista, cotas poderiam existir apenas para beneficiar pessoas com baixos recursos, independente de outra condição. E se formos analisar nossos DNAs, com certeza veremos que quase todos temos alguma descendência tanto de pessoas que foram escravizadas, quanto de escravizadores também. Excelente questionamento! Muito obrigado pela visita!
Quanta sabedoria em abordar uma questão tão delicada, importante e polêmica. Vindo do escritor que vem, não poderia ser diferente. Parabéns pelo belíssimo artigo, Marco Assis. Um privilégio poder fazer uma leitura com este nível de sensibilidade, entendimento e esclarecimento.
Querida professora Michele, que prazer em ler seu comentário! Isso me animna a continuar. Muito obrigado, mando um abraço!